sábado, 30 de julho de 2011

Miguelito e Sócrates: vai uma cicuta?

Acrópole ateniense

Miguelito nos relatava sobre suas andanças pela ágora ateniense, pelo Partenon, quando numa praça se deparou com muitos jovens ao redor de dois homens que travavam um duelo. Não, não era uma luta corporal, não era uma luta grega, era uma luta de palavras. De um lado Sócrates e sua arma mais poderosa: a ironia1. De outro Protágoras, o mais influente dos sofistas2 e sua arma mais poderosa: a retórica. Miguelito se aproximou e pôs-se a ouvir.
(Miguelito) – Ei moço, moço? Quem é o grandão?
- É Sócrates.
- Nossa, o doutor Sócrates? Ele está deixando o outro rapaz furioso!  E eles estão discutindo sobre futebol? O outro é palmeirense por acaso?
- Futebol? Palmeirense? Ti estin? (Em grego “O que é isso?”).
(Sócrates interrompe bruscamente seu debatedor e gira a cabeça como quem procura algo).
- Ti estin? Alguém disse isso?
(Miguelito) – Esse rapaz aqui falou esse palavrão Dr. Sócrates.
- Ti estin não é um palavrão meu amigo. É a pergunta fundamental da Filosofia. Ela vem do espanto, da admiração, da perplexidade! Por sinal estou admirado e espantado com você. Você fala? Qual sua estirpe?
- Sou Miguelito, venho de São Miguel Arcanjo e sou o último dos besouros sapiens.
- Ahh..é uma espécie inteligente! Mas por que me chamas doutor? Não sou douto em nada. Minha missão é encontrar um sábio. Você é um?
- Entendo um pouco de futebol. Não posso me considerar um sábio. O Neto é um sábio!
- Neto? Futebol? Ti estin?
- Vocês não jogam aqui? É um jogo onde há 11 homens em cada time....(ahhh meu Deus.....eu não acredito que estou tendo que explicar isso!).....e com uma bola tentam fazer um gol.
- Gol? Ti estin?
- Gol é o momento mágico do futebol, a catarse3 da multidão.
- Catarse? Isso eu sei o que é. Identificação com o heroi, com sua vitória, sua derrota ou sua morte. É isso?
- Mais ou menos doutor. A torcida pula, grita, chora. Ficam enlouquecidos!
- Não me chame de doutor, “só sei que nada sei”. E como se faz um gol?
- (Ahhh..meu Deus...isso já é ridículo!)....Olha só, em cada lado do campo tem uma trave e a bola tem que entrar lá e balançar as redes.
- Trave? Ti estin?
- É um retângulo de ferro sem a parte de baixo com uma rede amarrada.
- Retângulo? Geometria? Ahhh...“Não entre quem não saiba geometria”, não é Platão?
(Platão anotava todo o diálogo e apenas meneou a cabeça num sim silencioso)
- Podemos convidá-lo para sua Academia? Você aceita Miguelito?
- Sou péssimo em Matemática. Acho melhor não! Não consigo perder um jogo do Timão! E fiquei sabendo que quem entra na Academia fica bastante recluso. É quase um convento, não é?
- O mundo é uma ilusão Miguelito! Mas voltemos ao futebol. Preciso parir esse conceito, parece um jogo interessante.
- Na verdade Sócrates tem até um vídeo no youtube com um jogo de futebol entre filósofos. Você quer ver? Posso abrir meu notebook aqui. Vocês tem banda larga?
(Sócrates fica completamente aturdido) – Platão vem cá....acho que esse baixinho é um impostor ou fala uma língua que não conheço. Youtube, vídeo, banda larga, notebook. Ti estin Platão?
- Mestre...também não faço a mínima ideia. Acho que ele faz da linguagem um veneno e não um remédio. Deixa que eu falo com ele.
- Senhor Miguelito? Esse futebol eleva a alma, nos afasta das coisas do mundo?
- Depende Platão. Se torcer pelo Corinthians afasta completamente de tudo. Você abandona até a família! Você fica completamente absorto, como se estivesse em outro mundo!
- (Voltando-se para Sócrates) Mestre.....gostei, parece bom!
- E me diz mais uma coisa Miguelito. Esse Corinthians tem seguidores?
- Só no Brasil uns trinta milhões Platão.
- Nossa? É quase uma escola então? E quem torce para esse Corinthians prefere a verdade ou o fenômeno4? A liberdade ou a prisão?
- Sem sombra de dúvida o fenômeno. Ele é o cara. Agora: a liberdade nem tanto, mas a libertadores! Essa nós queremos muito!
(Platão afasta Sócrates para um canto e conversam quase sussurrando)
- Mestre....esse baixinho vai corromper nossa juventude. Ele é um perigo. O que faremos?
- Cadê a cicuta5 Platão?
- Está na sua cela.
(Enquanto Sócrates distraía Miguelito, Platão se retira e volta pouco tempo depois e entrega a taça de cicuta para Sócrates).
- Ei Miguelito? Você gosta de vinho?
- Ahh..aprecio bastante!
- Toma esse aqui. Uma cortesia grega para um besouro tão inteligente!
- Bom mesmo! Meio amargo. Nossa, até já estou sentindo adormecer minhas patinhas! Meu Deus! Você está meio amarelo Sócrates. Escuta, é impressão minha ou está anoitecendo?

1 – Do grego εἰρωνεία eirōneía, que de pode ser traduzido (de modo mais simples) por “perguntar”; dizer o contrário do que as palavras significam; também pode significar “disfarce”, ou “interrogação dissimulada”.
2 – Sucintamente, sofistas eram filósofos contemporâneos de Sócrates que se propunham a ensinar os jovens gregos principalmente a retórica (arte de persuadir através da palavra, do discurso), cobrando por seus ensinamentos.
3 - Catarse (do grego Κάθαρσις "kátharsis") é uma palavra utilizada em diversos contextos, como a tragédia, a medicina a psicanálise, que significa "purificação", "evacuação" ou "purgação". Segundo Aristóteles, a catarse refere-se à purificação das almas por meio de uma descarga emocional provocada por um drama.
4 – A palavra fenômeno deriva da palavra grega phainomenon, que pode ser traduzido por "observável" ou "algo que pode ser visto” ou ainda “aquilo que nos aparece”.
5 – Veneno que Sócrates foi condenado a beber após sua condenação sob as acusações de “corromper a juventude” e “não crer nos deuses da cidade”.

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