O famoso lema “Carpe Diem”
sussurrado pelo “Capitão, oh meu querido capitão” aos ouvidos de seus alunos na
icônica cena da vitrine de troféus do filme “Sociedade dos poetas mortos” ganhou
corações mundo afora. Hoje Carpe Diem é nome de perfume, de loja brega e de
loja chique, de festa top, de rave e de funk. Estampa canecas, bolsas,
camisetas, jogos de copos, lanchonetes, pizzarias, adegas, pingentes de coruja e até mouses. Sim, quiçá também a inteligência
artificial tenha lá seus desejos, paixões e gozos de toda sorte. Sabe-se lá? No absurdo tudo é possível! Como sou
bastante desconfiado, típico do filósofo chato e insuportável denunciado por
Erasmo de Roterdã no seu “Elogio da loucura”, vou seguir uma recomendação
nietzscheana e tentarei, como um arqueólogo, escavar as camadas superpostas para
tentar descobrir a origem dessas palavras, sua genealogia, seus desdobramentos,
lacunas e silêncios para que fossem tão “enfatizadas poética e
retoricamente, transpostas e enfeitadas, e que, após longo uso, parecessem a um
povo sólidas, canônicas e obrigatórias [....]”[1]
nesse mundo que, até ontem, beirava à histeria do relógio-cartão de crédito. Quiçá
essa busca nos faça beber de sua fonte original e não corramos mais o risco de dar-lhe
um rosto que jamais teve, uma espécie de Medusa que seduz para logo em seguida
nos petrificar a alma e a consciência.
Os mais avisados, de antemão
dirão corretamente que Carpe Diem é uma sentença latina, que significa algo
próximo de “Aproveite o dia!” Digo próximo porque bem sabem os bons tradutores o
quanto é laborioso encontrar palavras de sua língua que traduzam da forma mais
precisa possível e próximo de seu original sentido. Nas línguas, especialmente as
chamadas “maternas”, em se nomeando se diz, como nos lembra tão bem Heidegger,
visto que nelas (como o grego, o latim, a língua africana e a indígena, nosso
berço linguístico) as palavras se dizem por si mesmas e não há razão alguma para
explicar seu próprio sentido. Seria pleonasmo ridículo!
Os mais avisados ainda talvez digam
que essa sentença é de Epicuro, esse o filósofo mais mal interpretado
em toda história da filosofia, como é o caso de alguns imperadores nos primeiros séculos de
domínio romano, especialmente na figura de Calígula e seu hedonismo levado à
enésima potência. Banquetes que duravam dias, orgias suntuosas regadas a muito voyeurismo,
o espetáculo sórdido e sádico da tortura e da morte de seus detratores e
supostamente inimigos, ou simplesmente de vidas que não valiam a pena serem
vividas (pois Nietzsche já nos alertava que onde há castigo, há festa). Voltemos
para o Carpe Diem. Não, não foi criado por Epicuro, que era grego da ilha de
Samos. O mérito se deve a Horácio, poeta romano que viveu no século I a.C e
usou essa expressão no último verso do 11º poema do livro das Odes dedicada a Leucônoe
(etimologicamente próximo a algo como “cabeça vazia”, “mente branca”). Nele diz
Horácio: carpe diem quam minimum credula póstero, que possivelmente
está próximo de algo como “colhe o dia quanto menos confia no amanhã”. Certamente
a filosofia de Epicuro influenciou Horácio em suas Odes, bem como parte
considerável da literatura e um cem número de poetas e escritores. Deixarei Epicuro para depois. Ele
merece ser tratado com mais tempo e deferência. Para não perder o ponto
originário, precisamos nos deter nas Odes de Horácio, no “colher o dia” e sua
relação com a confiança ou não no amanhã.
O olhar contemporâneo é um olhar
sempre em perspectiva, o que não significa relativismo absoluto, pois acredito
que há bons textos assim como há aqueles que não valem muito nosso tempo, como talvez
esse que agora lês. Como perspectiva, me permitam um olhar e uma leitura muito
particular nesse momento tão distópico (convenhamos, deixou de sê-lo), tomando
todo cuidado para não desfigurar ainda mais o sentido que Horácio o deu. Me parece
que ao confiar demasiadamente no amanhã não colhemos o dia pois nossa Leucônoe
já não está mais vazia, todo o nosso ser está preenchido por uma espécie de
antecipação de sentido para o que há agora, para o que fazemos hoje em função
de um depois. Ou seja, o fazer hoje só tem sentido porque há um amanhã e esse
amanhã é que acaba por determinar o sentido de tudo e de todas as nossas
escolhas e ações. Vejam, quando não há o amanhã, o hoje passa a fazer o
sentido que se queira e ele não é mais determinado pelo futuro. Todas as nossas ações ganham uma
outra dimensão. Talvez sejamos, hoje, mais livres do que nunca formos. Todas as
pessoas que amamos, convivemos ou nos são caras, tornam-se muito mais do que
realmente supúnhamos. Coisas que antes nos eram tão significativas, tão
essenciais, esvaem-se pelos dedos embebecidos de sabão e álcool gel. Toda
vaidade vira riso, toda soberba vira pó, toda riqueza se estilhaça em mil pedaços
no buraco negro do tempo-agora. O Carpe diem jamais foi tão real como hoje. E talvez só agora o seja! Ele havia sido desfigurado e transformado numa coqueluche de medusas da Times Square
e da Oscar Freire. E uma espada infectada de vírus cortou a cabeça da medusa e sua sedução está
petrificada pelos menos por um tempo. Aproveitemos! Colhamos o hoje! Antes que
Perseu se canse e lance-a novamente sobre nós com aquele sedutor “Olhe nos meus olhos,
olhe nos meus olhos, veja como sou bela!” e voltemos à escravidão de sermos novamente livres!
(Permito-me, nesse tempo viral, ficar imune às regas da ABNT).
FRIEDRICH NIETZSCHE. A verdade e
a mentira no sentido extramoral.
HERASMO DE ROTERDA. Elogio da loucura.
MARTIN HEIDDEGER. O que é isso - a
Filosofia?
https://www.dicionariodelatim.com.br/c/