terça-feira, 7 de abril de 2020

Sêneca: vacina para vírus da alma (Parte II)

“Quem quer que tenha o firme propósito de se tornar útil aos cidadãos e, em geral, a todos os mortais, ao mesmo tempo em que trabalha e produz, deve administrar, de acordo com suas condições, tanto as coisas comuns quanto as particulares.” Da tranquilidade da alma, p. 44

A imagem que sempre tive dos estoicos foi de, se não aversão, pelo menos distanciamento da vida pública e da política. No período helenístico em que essa escola filosófica se desenvolveu, a vida política era regida por modelos autoritários ou imperiais, não havendo mais espaço para decisões coletivas e consensuais que permitiam a participação dos considerados cidadãos, como foi o caso da democracia grega clássica. A isonomia[1] e a isegoria[2] estavam suspensas, assim permanecendo por quase dois mil anos, somente recuperadas a partir das teorias dos filósofos jusnaturalistas e das revoluções dos séculos XVIII e XIX, especialmente a francesa.
Mas a obra de Sêneca parece demonstrar claramente que, mesmo em condições adversas, com os limites da vida pública mais estreitos e sendo obrigados a uma vida mais reclusa e  retirada, ainda assim seria possível algum tipo de ação, pois se pudéssemos prescindir de toda a comunicação com os demais humanos ou a eles renunciar completamente, permanecendo isolados em nós mesmos, viveríamos “uma solidão vazia de ação”. Na pior das hipóteses em que fossemos obrigados a renunciar, por imposição externa, a toda e qualquer ação visando a coletividade e ao bem comum, mesmo assim poderíamos viver a virtude e essa, mesmo que obscura e retirada, emitirá seus sinais e pessoas a ela acorrerão, podendo dela se nutrir e a outros propagar seu presságio.
O momento presente, de pandemia e isolamento, nos oferece uma grande ocasião para o exercício das virtudes[3]. Que cada um de nós encontre os meios próprios para isso, seja na ajuda silenciosa aos que mais necessitam, a fala amável e consoladora nos infortúnios mais desesperadores, o companheirismo afável para a distância saudável. Se estamos condenados, temporariamente, à solidão necessária e não podemos cumprir nossos deveres como cidadãos na vida pública e no trabalho, que os cumpramos como seres humanos.
Nos tornamos cosmopolitas como queria Sêneca. Nossos deveres não se limitam mais a um território, a uma bandeira e um hino, um partido, um líder, uma classe social, um gênero, uma religião ou uma família. Foi necessário o caos para nos lançarmos para além de todas as fronteiras, bandeiras e hinos, povos e etnias, deuses e espíritos, cores e matizes. Voltamos a ser um com o Cosmos, a contemplar a beleza de nossa pequenez na imensidão do universo, na natureza e tudo o que nela habita e que agora, por um lapso do tempo, pôde voltar ao seu ciclo natural e se recriar. Nossos gestos de virtude devem se estender aos humanos e para além deles. Para nós, “adultos”, pelo menos por hora. Para as novas gerações, quiçá uma nova humanidade e um novo planeta!



[1] Em grego significa o reconhecimento de igualdade como cidadão; hoje, no direito, é entendida, de maneira bastante simplificada, como igualdade perante a lei.
[2] Em grego significa igual direito à palavra, ao discurso e ao voto numa assembleia de cidadãos.
[3] Uso aqui o temo no plural para me referir ao quadro de virtudes presentes na obra de Aristóteles, mais especificamente na Ética a Nicômaco, como a temperança, coragem, liberalidade, gentileza, respeito próprio, prudência (a mais elevada), entre outras.

Bibliografia:
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. Coleção os Pensadores. São Paulo, Editora Abril: 2004.
EPICURO, Da tranquilidade da alma; tradução de Lúcia Sá Rabello e Ellen Itanajara Neves Vranas - Porto Alegre, RS: L&PM, 2013.
DICIONÁRIO PRIBERAM, disponível em https://dicionario.priberam.org/isegoria acesso in 07/04/2020.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Sêneca: vacina para vírus da alma! (Parte I)

A leitura de Sêneca não me tornou imune ao coronavírus, muito menos pude, das obras que ao meu alcance estavam nesse momento, extrair orientações e dicas de saúde corporal ou de etiqueta social para melhorar o “cuidado de si” e o “cuidado dos outros”. Nada de sabão, álcool gel ou pés descalços. Sêneca foi para mim uma espécie de terapia ocupacional da alma, uma psicanálise consciente sem o inconsciente, além de me permitir, “é óbvio”, uma compreensão da escola estoica que os livros didáticos não são capazes de ensinar, muito menos memes e resumos resumidos de internet. A leitura dos “clássicos”, sem deixar de reconhecer a importância dos estudiosos e especialistas, será sempre a melhor fonte, a mais confiável, e, “é óbvio”, a mais difícil. Mas voltemos a Sêneca para não correr o risco de que as sinapses nos leve longe demais e o alvo não seja atingido, muito menos o caminho reencontrado. Por isso, ainda que a biografia de Sêneca esteja indissociável de sua obra, a deixarei para os mais “curiosos” e para o Google.
Nas três curtíssimas obras lidas - gigantes por sua força, clareza e poder comunicativo - Da vida retirada, Da tranquilidade alma e Da felicidade,  em diferentes momentos, ao fazer uma autodefesa das acusações que o lançavam, o de ser rico e conviver com tiranos por exemplo,  Sêneca nos legou uma série de reflexões e aconselhamentos que podem (eu disse podem) ser úteis para a vida, especialmente em dias de tormenta e tempestade, como as que hoje levantam a poeira e sacodem as ondas do mar.
Logo no início do primeiro capítulo de Da tranquilidade da alma, Sêneca, “dialogando em silêncio” com Sereno, parece apontar para a existência em nós de vícios que são abertamente expostos e contínuos, como os relacionados ao corpo e que, talvez por isso, nem percebamos mais o quanto podem estar a nos prejudicar. E há também aqueles que ocorrem em intervalos intermitentes, que são muito mais incômodos, visto ocorrerem nas “ocasiões mais oportunas” (eu diria também inoportunas). Não pude deixar de lembrar nesse momento da leitura, dos atos falhos expostos tão bem pela psicanálise de Freud e sua origem inconsciente. Mas dai a Sêneca o que é de Sêneca, e a Freud o que é de Freud. Não quero ser condenado por heresia hermenêutica.
Parece que o ponto central de todas as reflexões propostas pelo estoico nesse momento está nas ambiguidades produzidas pela inconstância humana e que podem ser provocadas pelos eventos no tempo (o que os estoicos chamavam de Destino ou Vontade do Logos, a razão divina) , por nossas atitudes e escolhas, bem como pela relação que temos com as coisas, com os outros e com nosso próprio eu. Inúmeras inconstâncias são apontadas por ele, como a que há entre o tédio e a contínua mudança de propósitos, entre aqueles que não conseguem dormir e os que se reviram constantemente no leito para o que o sono venha, os que querem reformar suas vidas de modo permanente e os que a inércia produz o ódio às mudanças, não porque gostem de suas vidas, mas porque a rotina os conformou a elas.
O desequilíbrio da alma encontra-se então quando “desejos tímidos” e “pouco prósperos”, sempre instáveis e volúveis, acabam por permanecer em alguns apenas na esperança, a de que um dia possam acontecer, o que produz o desgosto por si e pela própria vida, visto que sempre nada acontece. Outros, para alcançar tais desejos,  acabarão por conduzir-se de forma desonesta e por caminhos difíceis, e quando todo labor dispensado é frustrado, atormentam-se, não porque o que desejavam era vil e mal, mas porque o desejaram em vão e acabaram por dispensar tempo e energia inutilmente. Como já não dominam mais seus desejos e nem podem mais se submeter a eles, isolam-se na solidão insuportável, desgostam-se no abandono e não mais tolerando sua inércia, voltam-se contra o sucesso dos outros ambicionando a ruína de todos. Enfurecidos contra a “sorte”, queixam-se do tempo e afundam-se numa autocomiseração, espécie de autossabotagem por vergonha de si mesmos.
Na voz do filósofo podemos escutá-lo: “Assim, seus desejos, fechados em sua estreiteza, sem possibilidade de evadir-se, acabam por sufocar a si mesmos. Por esse motivo, advém tristeza, fraqueza e milhares de frustrações de uma mente tomada pela indecisão. Ela mantém em suspenso as esperanças suscitadas e se frustra na desolação.”
Os desejos, embora não alcançados e satisfeitos, não morrem, nem são totalmente abandonados, podendo irromper sempre. São como as feridas, que machucam e deixam suas cascas, mas ainda sim geram sensação de prazer quando coçadas.

Então, cuidar cuidadosamente:

1º) Do que desejamos;
2º) Do quão verdadeiramente são necessários e úteis tais desejos;
3º) Dos caminhos que precisaremos trilhar, para que não permaneçamos na eterna esperança que fatiga e mata;
 4º) Do quanto de trabalho e força teremos que dispensar para torná-los realidade;
5º) Do quanto estamos preparados e precavidos para a possibilidade de não vingarem.

Oxalá o tempo-hoje nos abra para o novo e não tenhamos que repetir o velho clamor:
“Até quando sempre as mesmas coisas?”.


Bibliografia: SÊNECA, Da vida retirada; Da tranquilidade da alma; Da felicidade. Tradução de Lúcia Sá Rabello e Ellen Itanajara Neves Vranas - Porto Alegre, RS: L&PM, 2013.