A imagem que sempre tive dos estoicos foi de, se não aversão, pelo menos distanciamento da vida pública e da política. No período helenístico em que essa escola filosófica se desenvolveu, a vida política era regida por modelos autoritários ou imperiais, não havendo mais espaço para decisões coletivas e consensuais que permitiam a participação dos considerados cidadãos, como foi o caso da democracia grega clássica. A isonomia[1] e a isegoria[2] estavam suspensas, assim permanecendo por quase dois mil anos, somente recuperadas a partir das teorias dos filósofos jusnaturalistas e das revoluções dos séculos XVIII e XIX, especialmente a francesa.
Mas a obra de Sêneca parece
demonstrar claramente que, mesmo em condições adversas, com os limites da vida
pública mais estreitos e sendo obrigados a uma vida mais reclusa e retirada, ainda assim seria possível algum
tipo de ação, pois se pudéssemos prescindir de toda a comunicação com os demais
humanos ou a eles renunciar completamente, permanecendo isolados em nós mesmos,
viveríamos “uma solidão vazia de ação”. Na pior das hipóteses em que fossemos
obrigados a renunciar, por imposição externa, a toda e qualquer ação visando a
coletividade e ao bem comum, mesmo assim poderíamos viver a virtude
e essa, mesmo que obscura e retirada, emitirá seus sinais e pessoas a ela
acorrerão, podendo dela se nutrir e a outros propagar seu presságio.
O momento presente, de pandemia e
isolamento, nos oferece uma grande ocasião para o exercício das virtudes[3].
Que cada um de nós encontre os meios próprios para isso, seja na ajuda silenciosa
aos que mais necessitam, a fala amável e consoladora nos infortúnios mais
desesperadores, o companheirismo afável para a distância saudável. Se estamos
condenados, temporariamente, à solidão necessária e não podemos cumprir nossos
deveres como cidadãos na vida pública e no trabalho, que os cumpramos como seres
humanos.
Nos tornamos cosmopolitas como
queria Sêneca. Nossos deveres não se limitam mais a um território, a uma
bandeira e um hino, um partido, um líder, uma classe social, um gênero, uma
religião ou uma família. Foi necessário o caos para nos lançarmos para além de
todas as fronteiras, bandeiras e hinos, povos e etnias, deuses e espíritos,
cores e matizes. Voltamos a ser um com o Cosmos, a contemplar a beleza de nossa
pequenez na imensidão do universo, na natureza e tudo o que nela habita e que
agora, por um lapso do tempo, pôde voltar ao seu ciclo natural e se recriar. Nossos
gestos de virtude devem se estender aos humanos e para além deles. Para nós, “adultos”,
pelo menos por hora. Para as novas gerações, quiçá uma nova humanidade e um
novo planeta!
[1] Em
grego significa o reconhecimento de igualdade como cidadão; hoje,
no direito, é entendida, de maneira bastante simplificada, como igualdade
perante a lei.
[2] Em
grego significa igual direito à palavra, ao discurso e ao voto numa assembleia de
cidadãos.
[3] Uso
aqui o temo no plural para me referir ao quadro de virtudes presentes na obra
de Aristóteles, mais especificamente na Ética a Nicômaco, como a temperança,
coragem, liberalidade, gentileza, respeito próprio, prudência (a mais elevada),
entre outras.
Bibliografia:
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. Coleção os Pensadores. São Paulo, Editora Abril: 2004.
EPICURO, Da tranquilidade da alma; tradução de Lúcia Sá Rabello e Ellen Itanajara Neves Vranas - Porto Alegre, RS: L&PM, 2013.
DICIONÁRIO PRIBERAM, disponível em https://dicionario.priberam.org/isegoria acesso in 07/04/2020.