terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Discurso de formatura 9ºA e B - SESI Itapeva 2020

 

Boa noite a cada pessoa aqui presente nesse dia tão especial. Uma formatura é um momento único, genuíno, e a de 2020 é praticamente uma Monalisa, jamais existirá outra igual, apenas releituras, como as que a professora Marcela trabalha com tanta dedicação e criatividade. Da Vinci te perdoa, tá Má! Nenhuma geração jamais imaginou, nem mesmo em seus devaneios distópicos mais distantes o que estamos vivendo hoje.  Geração Z já é história! Ok, boomers?

E por falar em gerações, como não lembrar delas no dia de hoje? É muito provável que temos as gerações mais conhecidas aqui representadas hoje: BB, X, Y, Z e Alfa (provavelmente jogando algo no celular e falando “sozinhos” nesse exato momento). Vejam que momento único: estudamos, discutimos e dialogamos tanto no EIXO sobre os conflitos e as dificuldades de se conviver geracionalmente tendo vivido em tempos e mundos tão diferentes e agora estamos aqui, no mesmo espaço, pela mesma razão. Por falar nisso, vamos a um aulão revisional então? Eixo não teve prova mesmo! Pode ser 9ºA e B?

Quem é da Geração Baby Boomer aqui presente presenciou um dos momentos históricos mais tenebrosos da humanidade: foi testemunha ocular (ou talvez depois de seu fim) dos campos de concentração e do horror nazista, viu erigirem-se regimes totalitários em diferentes partes do globo, que já sabiam ser esférico. Pelo menos a escola já os ensinava e as viagens espaciais vieram ratificar o que já afirmava Ptolomeu no séc. I da era cristã.  Pois é professora Márcia e professor Anderson, os matemáticos sempre souberam antes de todos, que inveja, que ódio. Se Darwin tivesse antevisto o terraplanismo, talvez excluísse os humanos da escala evolutiva, né não Mayara? Mas a geração Baby Boomer não foi testemunha só do horror que a professora Tânia ensina com tanta dedicação para que as futuras gerações não repitam tamanha barbárie (calma Tânia, aquela perguntinha se é de esquerda ou direita, também me fazem! Tmj).  Os BB também viram florescer o sonho de um mundo melhor, de uma grande revolução, viu estudantes e professores universitários tomarem as ruas de Paris no maio de 68 gritando por liberdade. Viu Luther King fazer o discurso mais profundo que já vi e ouvi professora Elaine, mas com legenda tá? Quem sabe um trabalho interdisciplinar com essa galera no médio me ajude a dispensá-las. “Y have a dream”. “Eu tenho um sonho”, repetia inúmeras vezes e cada uma delas irrepetível! Geração BB também viu surgir a força da mulher negra, Angela Davis, até hoje exemplo de resistência e luta contra o racismo. Viu o Woodstock, e Joe Cocker, a virtuose de Jimi Hendrix, a potência de Janis Joplin. Eram jovens quando viram lançar o russo Sputnik em 1957, o primeiro satélite em órbita. Eu sei, os americanos não aceitam até hoje. A celeuma será eterna, a Guerra Fria parece nunca ter fim professora Jesi, a geopolítica não dá trégua, não é? E agora tem a vacina com selo de aduana. E viram ainda as comidas se enlatarem professora Arline. Adeus fogão de lenha. Dá-lhe química e conservante! Uma lata de massa tomate e um saco de carvão vegetal vale bem um projeto mega disciplinar, né não professora?

Teria muito a dizer sobre os BBs, mas deixo para que vocês os ouçam. E ouçam mesmo, valerá muito a pena!

Agora é a vez da minha geração e, talvez, de alguns de seus pais ou familiares aqui presentes, a geração X. Essa viu o cinema invadir as cidades. O de Itapeva era na Rua Dr. Pinheiro, lembram? Se os BB viram nascer a TV e o cinema preto e branco, a X viu o mundo ficar colorido, caber dentro de uma fita K7 (rebobinadas a Bic), de VHSs que pagávamos multa ao não rebobinar para devolver na locadora. Locadora? Desconfio que muitos de vocês nem saibam o que é isso. Se tiver alguém da Alfa, tenho certeza que não. Montanhas de fitas para quem comprava o primeiro Videocassete. Eita, aquilo era sinal de riqueza! Telefone fixo era sinal de muita riqueza! Nem dava tempo de ver tudo, tamanha a euforia. Vimos Rambo, Robocop, Lagoa Azul (um escândalo na época, diga-se de passagem), vimos sem entender nada o Exterminador do Futuro. Mal sabíamos que alguns deles já estavam tão próximos! Com Chuck Noris, acreditamos piamente que o mal estava do lado de lá do Oceano. E tínhamos uma catarse quando ele explodia o eixo do mal a bordo de uma moto que soltava mísseis. Sim, os americanos sempre foram uma espécie de Mister M da telona. E numa ameaça alienígena então? Quem nos salvará? Chapolin. Nãããooo! Esse é Mexicano, bota pro lado de lá do muro. Quem nos salvará é Brad Pitt, é Tom Cruise, são as Panteras. Se é pra alguém nos salvar, tem que ser dentro dos padrões hollywoodianos, né minha filha? Minha geração viu a indústria cultural chegar forte como nenhuma outra, desenhos animados invadiram nossas manhãs, junto com toda sua publicidade. A arte virou diversão professora Marcela, e grana! Muita grana! Viu Michel Jackson fazer o primeiro clipe com roteiro, direção e créditos no final. Viu Madona escandalizar o papa! Viu o Muro de Berlim vir abaixo a marretada e o povo a cantar: não há mais esquerda e direita, acabou! Somos uma coisa só e globalizada Jesi. Chique não? Agora as olimpíadas não terão mais aquela disputa de bloco professor Fabrício. Afinal, o que músculos, velocidade, destreza física, inteligência motora tem a ver com política? Nada, não é professor? E vimos os Menudos, Backstreet Boys, Xuxa e as paquitas (sim, um dia eu fui apaixonado pela Xuxa, acreditem! Só a filosofia me libertou! Ufa!). Vimos Cindy Lauper lacrar e causar com sua voz e cabelos coloridos. E vimos um Papa extremamente carismático, conservador nos costumes, sofrer atentado e perdoar o atirador.  E vimos o celular tijolão ser ostentado como novo videocassete. Seu pai tem um? Noooossa! E fico por aqui porque minha geração viu o mundo se abrir e fechar e ainda estamos confusos e perdidos em meio a sonhos e pesadelos, alegrias e preconceitos que urgem serem desconstruídos, assim como nossa relação com a natureza.

E a geração Y?  Já nasceu com computadores mais potentes (um quadrado branco e um teclado gigante, bem sei) e com internet (discada, eu também sei disso! Sou uma espécie de narrador onisciente) Rede social era o Orkut e suas comunidades pra lá de estranhas e engraçadas, “Eu não sei escrever Nietzsche”, “Eu assistia Tele Tubes”. Cresceram em um mundo “mais estável”, mas também muito mais imediatista, mais pragmático, mais egoísta. Mas foram também a primeira geração e se preocupar e se envolver de forma mais intensa com o meio ambiente e fortes valores morais. Minha geração matava passarinho ou os engaiolava. Os Y abriram as grades. Minha geração tinha o sonho de conquistar um emprego estável (trabalhar em um banco, na Maringá, passar em concurso) para ali permanecer até aposentar (palavra estranha hoje, não é mesmo?). Os Y preferem fazer o que gostam, o que dá prazer muito mais do que “o quanto ganharei e em quanto tempo”.  A revolução feminina chegou aqui pra ficar, bem como projetos coletivos que deem mais sentido ao existir como humanos que vivem em aldeia urbana. E também a inclusão, que não dará um passo atrás depois dessa geração, não é professora Rosilda?

E os Ys gestaram os “Zs” que hoje se formam. E eu não direi quase nada sobre vocês. Ainda me sinto meio estranho no ninho. Vocês me assustam, me fazem rir, me fazem chorar (o dia da escolha como paraninfo que o diga, não é 9ºB? Mas vocês me pagam ainda!). Quando numa aula sobre distopia, ouço uma aluna dizer que já tinha lido “Admirável mundo novo” de Aldoux Huxley e outra, partes de “1984”, eu gelei! Eu fui ler Huxley na faculdade! George Orwel nas férias do ano passado! Eu fico imaginando o que a Professora Mariane vai trabalhar em literatura com essa galera? Alguma distopia galáctica? Heim Mariane? As professoras Silvana e Gisele têm os muitos dedos aí, tenho certeza! Valdir, tá preparado pra um projeto inter, multi e transdisciplinar? Vamos ter que botar um foguete em órbita meu filho!  Anderson e Beatriz: preparem robôs para invadir Marte!

Uma geração que tem na capa de abertura Malala e Greta Thunberg!

Olha o tamanho da bronca! Olha o tamanho da esperança!

Imensa gratidão e sejam bem vindos e bem vindas ao médio!

E que a Fer, a Isa e a Vã, toda equipe SESI 399, a Caverna dos dragões sem o mestre dos magos, os seres de luz e sabedoria de todo o cosmos estejam do nosso lado mais uma vez! Vamos precisar, viu? Como nunca!

Gratidão eterna e um beijo no coração de cada formando e formanda!

E a geração Alfa professor? Esqueceu? Não, mas agora devem estar jogando Minecraft ou criando algum canal no Youtube. Depois vocês mandam aquele grande abraço!

 

 

 

 

 

 

Discurso de formatura 3ºA - SESI Itapeva 2020



 Hoje é dia de gratidão!

Gratidão imensa a cada ser humano aqui presente, a cada animalzinho de estimação que ofereceu companhia e carinho para tantas pessoas nesse 2020, a cada animal, planta e rio que resistiu e resiste a todas as tentativas de aniquilação. Gratidão a todos os heróis invisíveis desse país, especialmente os profissionais da saúde.

Gratidão imensa ao 3º ano por terem me escolhido paraninfo para representar toda a equipe de professores e professoras de nossa escola, de todos os ciclos pelos quais passaram, de todas os espaços escolares que já frequentaram. Esse momento é a consolidação de um longo percurso, de uma rede enorme de pessoas que passaram pela vida escolar de cada um e cada uma: merendeiras e merendeiros, jardineiros e jardineiras, seguranças e recepcionistas, agentes de limpeza, funcionários e funcionárias da administração e manutenção, agentes de apoio escolar, analistas, estagiários e estagiárias, bibliotecários e bibliotecárias, coordenadores e coordenadoras pedagógicas, diretores e diretoras, professores e professores, colegas de sala e familiares. Pensem em quantas pessoas foram importantes para esse momento de concretizar? Evidente que nós, do SESI, somos os prediletos, não é mesmo? Quem aqui está desde pequeno ou pequena, não tem outra escolha.

Gratidão imensa por estarmos vivos, com saúde e o coração repleto de alegria para celebrarmos o dia de hoje. O dia de hoje precisa e merece ser celebrado, mesmo com todas as angústias que ainda nos aperta o coração e a alma.  

Gratidão imensa por todos os desafios que esse ano nos colocou no caminho. E eles começaram quando vocês ainda tentavam nos convencer a comprar a camiseta da sala. Lembram? “Gente, que camiseta é essa? Num tem condição não gente! Caro demais! Sé doido!”. “E tem o blusão se quiser professor”, gritou alguém. Quê? Vai meu pagamento inteiro nesse trem doida!”. Risos, risos, passos apressados para convencer a mim e aos demais colegas. E tudo que parecia tão grande, tão imprescindível, ficou pequeno, vazio, sem sentido. Mas como disse a vocês na última aula: a festa foi adiada, não cancelada. E ela será muito maior, mais plena e vibrante. Lembrem-se do que dizia Epicuro. Há sofrimentos e dores que, se suportados com sabedoria, podem nos proporcionar prazeres e felicidades muito maiores do que a própria dor sentida. A privação pode nos ensinar a valorizar o que antes nos era despercebido: os olhares, os gestos, o afago, o riso, a lágrima, o tom da voz, o cheiro do corpo, o toque, o sussurro, o grunhido, a tes, a amizade, essa o bem mais duradouro e fértil segundo esses mesmos filósofos. Oxalá tudo isso nos torne maiores e mais humanos, como vocês alunos e alunas do 3º ano se tornaram ao longo de todos esses anos. Foi no 7º ano, projeto de Empreendedorismo, que os conheci pela primeira vez. Eu sequer fazia ideia do tamanho da encrenca que me aguardava. Meus tímpanos ainda vibram com tantos entusiasmos, discussões, reclamações, e quantas reclamações! Competição acirrada, quase impossível formar uma equipe sem alguém chegar pertinho e falar baixinho: “Não coloca essas duas pessoas no mesmo grupo professor, vai dá morte!”. Lembram? E chegou a Feira de livros (o SESI tem essa coisa de produto final a muito tempo, não é Fer, Isa e Vanessa?). No final, fizemos uma feira maravilhosa, arrecadamos centenas de livros, uma tenda colorida e vibrante. Ali eu entendi o potencial de vocês, especialmente das alunas e alunos que ficaram. Muitos foram embora e a turma encolheu. Rostos demarcavam o medo, uma sensação estranha de vazio e ao mesmo tempo alegria pelos que ali fincaram pé. “Não vou embora, meu lugar é aqui” era a mensagem. Mas e agora? Meu Deus? Essa turma não se forma no médio meu pai! Lembram amigos e amigas? De repente, vem um, mais uma na outra semana, mais duas na seguinte. Felicidade contida. Estávamos esperançosos, mas tínhamos que fazer o centrão dialogar com a extrema-direita e extrema-esquerda. Sim, escola é lugar de política. Lembram da “arquitetura” da sala? Na psicanálise isso tem nome: mecanismos de defesa. Pasmem, eles nos protegem, mas também nos ocultam. E é preciso tempo, paciência, cuidado e afeto para que os muros sejam colocados abaixo. Não é no embate, na marra, na marreta. É na escuta, na observação atenta, na aproximação vagarosa, silenciosa. “Então agora somos uma coisa só professor? Não há mais nenhuma barreira?” Vocês sabem a resposta. Mas sabem também que as mais importantes foram ao chão: a vaidade, o orgulho e a indiferença. Nasceu o cuidado, o respeito e a partilha. Vocês já estavam se preparando para o que enfrentariam nesse 2020 sem sequer imaginar. Vocês foram enormes, gigantes. Confesso que não sei se teria forças para ser tão resiliente se, na idade de vocês, tivesse que passar por tudo o que passaram. Nietzsche nunca fez tanto sentido pra mim como ao olhar para vocês nesse momento. Ele chamava tudo isso de autossuperação, de quem é capaz de fazer das pedras fortaleza, das dores o vigor do espírito. “O que não me destrói, me fortalece!”. Viver a vida como obra de arte, mesmo em meio ao caos e o ocaso. No caso de sua filosofia, falava num tom bastante solitário. Vocês demonstraram que é possível construir grandes obras de arte a muitas mãos. Muitíssimo grato por terem nos ensinado que é possível, principalmente hoje, quando vemos tantos exemplos que querem nos convencer do contrário, de que o que vale é o egoísmo mais mesquinho, a ignorância mais abjeta, o ódio mais mortal.

É um ano tão desafiador, que até um discurso de formatura, que antes parecia fluir tão naturalmente, repleto de poesia e divagações filosóficas, hoje deu lugar ao pulsar do coração, a uma alegria que não sei de onde vem diante de tanta dor. Quiçá as Moiras nos quisessem fazer desistir e abandonar tudo, para que Cloto finalmente pudesse cortar o fio. Mas não vamos, assim como vocês formandos e formandas não desistiram. Desejamos o melhor para cada um e cada uma! Que o amor, o cuidado e a sabedoria que nos ensinaram nos ajude a vencer o ódio, o egoísmo e a ignorância.

E lembrem-se do que eu disse: se um dia, já mais velhinhos e velhinhas, alguém puxar assunto de formatura, deixem falar. Apenas no final da conversa: me formei em 2020. O resto você entenderá! Vocês são e serão a história viva!

Que a vida sorria para vocês, como fizeram para nós, mesmo que remotamente e com a câmera desligada. Valeu mesmo!

Um beijo no coração e gratidão imensa!

Prof. Júlio Garcia

terça-feira, 7 de abril de 2020

Sêneca: vacina para vírus da alma (Parte II)

“Quem quer que tenha o firme propósito de se tornar útil aos cidadãos e, em geral, a todos os mortais, ao mesmo tempo em que trabalha e produz, deve administrar, de acordo com suas condições, tanto as coisas comuns quanto as particulares.” Da tranquilidade da alma, p. 44

A imagem que sempre tive dos estoicos foi de, se não aversão, pelo menos distanciamento da vida pública e da política. No período helenístico em que essa escola filosófica se desenvolveu, a vida política era regida por modelos autoritários ou imperiais, não havendo mais espaço para decisões coletivas e consensuais que permitiam a participação dos considerados cidadãos, como foi o caso da democracia grega clássica. A isonomia[1] e a isegoria[2] estavam suspensas, assim permanecendo por quase dois mil anos, somente recuperadas a partir das teorias dos filósofos jusnaturalistas e das revoluções dos séculos XVIII e XIX, especialmente a francesa.
Mas a obra de Sêneca parece demonstrar claramente que, mesmo em condições adversas, com os limites da vida pública mais estreitos e sendo obrigados a uma vida mais reclusa e  retirada, ainda assim seria possível algum tipo de ação, pois se pudéssemos prescindir de toda a comunicação com os demais humanos ou a eles renunciar completamente, permanecendo isolados em nós mesmos, viveríamos “uma solidão vazia de ação”. Na pior das hipóteses em que fossemos obrigados a renunciar, por imposição externa, a toda e qualquer ação visando a coletividade e ao bem comum, mesmo assim poderíamos viver a virtude e essa, mesmo que obscura e retirada, emitirá seus sinais e pessoas a ela acorrerão, podendo dela se nutrir e a outros propagar seu presságio.
O momento presente, de pandemia e isolamento, nos oferece uma grande ocasião para o exercício das virtudes[3]. Que cada um de nós encontre os meios próprios para isso, seja na ajuda silenciosa aos que mais necessitam, a fala amável e consoladora nos infortúnios mais desesperadores, o companheirismo afável para a distância saudável. Se estamos condenados, temporariamente, à solidão necessária e não podemos cumprir nossos deveres como cidadãos na vida pública e no trabalho, que os cumpramos como seres humanos.
Nos tornamos cosmopolitas como queria Sêneca. Nossos deveres não se limitam mais a um território, a uma bandeira e um hino, um partido, um líder, uma classe social, um gênero, uma religião ou uma família. Foi necessário o caos para nos lançarmos para além de todas as fronteiras, bandeiras e hinos, povos e etnias, deuses e espíritos, cores e matizes. Voltamos a ser um com o Cosmos, a contemplar a beleza de nossa pequenez na imensidão do universo, na natureza e tudo o que nela habita e que agora, por um lapso do tempo, pôde voltar ao seu ciclo natural e se recriar. Nossos gestos de virtude devem se estender aos humanos e para além deles. Para nós, “adultos”, pelo menos por hora. Para as novas gerações, quiçá uma nova humanidade e um novo planeta!



[1] Em grego significa o reconhecimento de igualdade como cidadão; hoje, no direito, é entendida, de maneira bastante simplificada, como igualdade perante a lei.
[2] Em grego significa igual direito à palavra, ao discurso e ao voto numa assembleia de cidadãos.
[3] Uso aqui o temo no plural para me referir ao quadro de virtudes presentes na obra de Aristóteles, mais especificamente na Ética a Nicômaco, como a temperança, coragem, liberalidade, gentileza, respeito próprio, prudência (a mais elevada), entre outras.

Bibliografia:
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. Coleção os Pensadores. São Paulo, Editora Abril: 2004.
EPICURO, Da tranquilidade da alma; tradução de Lúcia Sá Rabello e Ellen Itanajara Neves Vranas - Porto Alegre, RS: L&PM, 2013.
DICIONÁRIO PRIBERAM, disponível em https://dicionario.priberam.org/isegoria acesso in 07/04/2020.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Sêneca: vacina para vírus da alma! (Parte I)

A leitura de Sêneca não me tornou imune ao coronavírus, muito menos pude, das obras que ao meu alcance estavam nesse momento, extrair orientações e dicas de saúde corporal ou de etiqueta social para melhorar o “cuidado de si” e o “cuidado dos outros”. Nada de sabão, álcool gel ou pés descalços. Sêneca foi para mim uma espécie de terapia ocupacional da alma, uma psicanálise consciente sem o inconsciente, além de me permitir, “é óbvio”, uma compreensão da escola estoica que os livros didáticos não são capazes de ensinar, muito menos memes e resumos resumidos de internet. A leitura dos “clássicos”, sem deixar de reconhecer a importância dos estudiosos e especialistas, será sempre a melhor fonte, a mais confiável, e, “é óbvio”, a mais difícil. Mas voltemos a Sêneca para não correr o risco de que as sinapses nos leve longe demais e o alvo não seja atingido, muito menos o caminho reencontrado. Por isso, ainda que a biografia de Sêneca esteja indissociável de sua obra, a deixarei para os mais “curiosos” e para o Google.
Nas três curtíssimas obras lidas - gigantes por sua força, clareza e poder comunicativo - Da vida retirada, Da tranquilidade alma e Da felicidade,  em diferentes momentos, ao fazer uma autodefesa das acusações que o lançavam, o de ser rico e conviver com tiranos por exemplo,  Sêneca nos legou uma série de reflexões e aconselhamentos que podem (eu disse podem) ser úteis para a vida, especialmente em dias de tormenta e tempestade, como as que hoje levantam a poeira e sacodem as ondas do mar.
Logo no início do primeiro capítulo de Da tranquilidade da alma, Sêneca, “dialogando em silêncio” com Sereno, parece apontar para a existência em nós de vícios que são abertamente expostos e contínuos, como os relacionados ao corpo e que, talvez por isso, nem percebamos mais o quanto podem estar a nos prejudicar. E há também aqueles que ocorrem em intervalos intermitentes, que são muito mais incômodos, visto ocorrerem nas “ocasiões mais oportunas” (eu diria também inoportunas). Não pude deixar de lembrar nesse momento da leitura, dos atos falhos expostos tão bem pela psicanálise de Freud e sua origem inconsciente. Mas dai a Sêneca o que é de Sêneca, e a Freud o que é de Freud. Não quero ser condenado por heresia hermenêutica.
Parece que o ponto central de todas as reflexões propostas pelo estoico nesse momento está nas ambiguidades produzidas pela inconstância humana e que podem ser provocadas pelos eventos no tempo (o que os estoicos chamavam de Destino ou Vontade do Logos, a razão divina) , por nossas atitudes e escolhas, bem como pela relação que temos com as coisas, com os outros e com nosso próprio eu. Inúmeras inconstâncias são apontadas por ele, como a que há entre o tédio e a contínua mudança de propósitos, entre aqueles que não conseguem dormir e os que se reviram constantemente no leito para o que o sono venha, os que querem reformar suas vidas de modo permanente e os que a inércia produz o ódio às mudanças, não porque gostem de suas vidas, mas porque a rotina os conformou a elas.
O desequilíbrio da alma encontra-se então quando “desejos tímidos” e “pouco prósperos”, sempre instáveis e volúveis, acabam por permanecer em alguns apenas na esperança, a de que um dia possam acontecer, o que produz o desgosto por si e pela própria vida, visto que sempre nada acontece. Outros, para alcançar tais desejos,  acabarão por conduzir-se de forma desonesta e por caminhos difíceis, e quando todo labor dispensado é frustrado, atormentam-se, não porque o que desejavam era vil e mal, mas porque o desejaram em vão e acabaram por dispensar tempo e energia inutilmente. Como já não dominam mais seus desejos e nem podem mais se submeter a eles, isolam-se na solidão insuportável, desgostam-se no abandono e não mais tolerando sua inércia, voltam-se contra o sucesso dos outros ambicionando a ruína de todos. Enfurecidos contra a “sorte”, queixam-se do tempo e afundam-se numa autocomiseração, espécie de autossabotagem por vergonha de si mesmos.
Na voz do filósofo podemos escutá-lo: “Assim, seus desejos, fechados em sua estreiteza, sem possibilidade de evadir-se, acabam por sufocar a si mesmos. Por esse motivo, advém tristeza, fraqueza e milhares de frustrações de uma mente tomada pela indecisão. Ela mantém em suspenso as esperanças suscitadas e se frustra na desolação.”
Os desejos, embora não alcançados e satisfeitos, não morrem, nem são totalmente abandonados, podendo irromper sempre. São como as feridas, que machucam e deixam suas cascas, mas ainda sim geram sensação de prazer quando coçadas.

Então, cuidar cuidadosamente:

1º) Do que desejamos;
2º) Do quão verdadeiramente são necessários e úteis tais desejos;
3º) Dos caminhos que precisaremos trilhar, para que não permaneçamos na eterna esperança que fatiga e mata;
 4º) Do quanto de trabalho e força teremos que dispensar para torná-los realidade;
5º) Do quanto estamos preparados e precavidos para a possibilidade de não vingarem.

Oxalá o tempo-hoje nos abra para o novo e não tenhamos que repetir o velho clamor:
“Até quando sempre as mesmas coisas?”.


Bibliografia: SÊNECA, Da vida retirada; Da tranquilidade da alma; Da felicidade. Tradução de Lúcia Sá Rabello e Ellen Itanajara Neves Vranas - Porto Alegre, RS: L&PM, 2013.






segunda-feira, 23 de março de 2020

Carpe Diem em tempo de coronavírus?


O famoso lema “Carpe Diem” sussurrado pelo “Capitão, oh meu querido capitão” aos ouvidos de seus alunos na icônica cena da vitrine de troféus do filme “Sociedade dos poetas mortos” ganhou corações mundo afora. Hoje Carpe Diem é nome de perfume, de loja brega e de loja chique, de festa top, de rave e de funk. Estampa canecas, bolsas, camisetas, jogos de copos, lanchonetes, pizzarias, adegas, pingentes de coruja e até mouses. Sim, quiçá também a inteligência artificial tenha lá seus desejos, paixões e gozos de toda sorte. Sabe-se lá? No absurdo tudo é possível! Como sou bastante desconfiado, típico do filósofo chato e insuportável denunciado por Erasmo de Roterdã no seu “Elogio da loucura”, vou seguir uma recomendação nietzscheana e tentarei, como um arqueólogo, escavar as camadas superpostas para tentar descobrir a origem dessas palavras, sua genealogia, seus desdobramentos, lacunas e silêncios para que fossem tão “enfatizadas poética e retoricamente, transpostas e enfeitadas, e que, após longo uso, parecessem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias [....][1] nesse mundo que, até ontem, beirava à histeria do relógio-cartão de crédito. Quiçá essa busca nos faça beber de sua fonte original e não corramos mais o risco de dar-lhe um rosto que jamais teve, uma espécie de Medusa que seduz para logo em seguida nos petrificar a alma e a consciência.
Os mais avisados, de antemão dirão corretamente que Carpe Diem é uma sentença latina, que significa algo próximo de “Aproveite o dia!” Digo próximo porque bem sabem os bons tradutores o quanto é laborioso encontrar palavras de sua língua que traduzam da forma mais precisa possível e próximo de seu original sentido. Nas línguas, especialmente as chamadas “maternas”, em se nomeando se diz, como nos lembra tão bem Heidegger, visto que nelas (como o grego, o latim, a língua africana e a indígena, nosso berço linguístico) as palavras se dizem por si mesmas e não há razão alguma para explicar seu próprio sentido. Seria pleonasmo ridículo!
Os mais avisados ainda talvez digam que essa sentença é de Epicuro, esse o filósofo mais mal interpretado em toda história da filosofia, como é o caso de  alguns imperadores nos primeiros séculos de domínio romano, especialmente na figura de Calígula e seu hedonismo levado à enésima potência. Banquetes que duravam dias, orgias suntuosas regadas a muito voyeurismo, o espetáculo sórdido e sádico da tortura e da morte de seus detratores e supostamente inimigos, ou simplesmente de vidas que não valiam a pena serem vividas (pois Nietzsche já nos alertava que onde há castigo, há festa). Voltemos para o Carpe Diem. Não, não foi criado por Epicuro, que era grego da ilha de Samos. O mérito se deve a Horácio, poeta romano que viveu no século I a.C e usou essa expressão no último verso do 11º poema do livro das Odes dedicada a Leucônoe (etimologicamente próximo a algo como “cabeça vazia”, “mente branca”). Nele diz Horácio: carpe diem quam minimum credula póstero, que possivelmente está próximo de algo como “colhe o dia quanto menos confia no amanhã”. Certamente a filosofia de Epicuro influenciou Horácio em suas Odes, bem como parte considerável da literatura e um cem número de poetas e escritores. Deixarei Epicuro para depois. Ele merece ser tratado com mais tempo e deferência. Para não perder o ponto originário, precisamos nos deter nas Odes de Horácio, no “colher o dia” e sua relação com a confiança ou não no amanhã.
O olhar contemporâneo é um olhar sempre em perspectiva, o que não significa relativismo absoluto, pois acredito que há bons textos assim como há aqueles que não valem muito nosso tempo, como talvez esse que agora lês. Como perspectiva, me permitam um olhar e uma leitura muito particular nesse momento tão distópico (convenhamos, deixou de sê-lo), tomando todo cuidado para não desfigurar ainda mais o sentido que Horácio o deu. Me parece que ao confiar demasiadamente no amanhã não colhemos o dia pois nossa Leucônoe já não está mais vazia, todo o nosso ser está preenchido por uma espécie de antecipação de sentido para o que há agora, para o que fazemos hoje em função de um depois. Ou seja, o fazer hoje só tem sentido porque há um amanhã e esse amanhã é que acaba por determinar o sentido de tudo e de todas as nossas escolhas e ações. Vejam, quando não há o amanhã, o hoje passa a fazer o sentido que se queira e ele não é mais determinado pelo futuro. Todas as nossas ações ganham uma outra dimensão. Talvez sejamos, hoje, mais livres do que nunca formos. Todas as pessoas que amamos, convivemos ou nos são caras, tornam-se muito mais do que realmente supúnhamos. Coisas que antes nos eram tão significativas, tão essenciais, esvaem-se pelos dedos embebecidos de sabão e álcool gel. Toda vaidade vira riso, toda soberba vira pó, toda riqueza se estilhaça em mil pedaços no buraco negro do tempo-agora. O Carpe diem jamais foi tão real como hoje. E talvez só agora o seja! Ele havia sido desfigurado e transformado numa coqueluche de medusas da Times Square e da Oscar Freire. E uma espada infectada de vírus cortou a cabeça da medusa e sua sedução está petrificada pelos menos por um tempo. Aproveitemos! Colhamos o hoje! Antes que Perseu se canse e lance-a novamente sobre nós com aquele sedutor “Olhe nos meus olhos, olhe nos meus olhos, veja como sou bela!” e voltemos à escravidão de sermos novamente livres!

(Permito-me, nesse tempo viral, ficar imune às regas da ABNT).

FRIEDRICH NIETZSCHE. A verdade e a mentira no sentido extramoral.
HERASMO DE ROTERDA. Elogio da loucura.
MARTIN HEIDDEGER. O que é isso - a Filosofia?
https://www.dicionariodelatim.com.br/c/


Resultado de imagem para perseu


[1] NIETZSCHE, F. A verdade e a mentira no sentido extramoral, p.48.