segunda-feira, 6 de abril de 2020

Sêneca: vacina para vírus da alma! (Parte I)

A leitura de Sêneca não me tornou imune ao coronavírus, muito menos pude, das obras que ao meu alcance estavam nesse momento, extrair orientações e dicas de saúde corporal ou de etiqueta social para melhorar o “cuidado de si” e o “cuidado dos outros”. Nada de sabão, álcool gel ou pés descalços. Sêneca foi para mim uma espécie de terapia ocupacional da alma, uma psicanálise consciente sem o inconsciente, além de me permitir, “é óbvio”, uma compreensão da escola estoica que os livros didáticos não são capazes de ensinar, muito menos memes e resumos resumidos de internet. A leitura dos “clássicos”, sem deixar de reconhecer a importância dos estudiosos e especialistas, será sempre a melhor fonte, a mais confiável, e, “é óbvio”, a mais difícil. Mas voltemos a Sêneca para não correr o risco de que as sinapses nos leve longe demais e o alvo não seja atingido, muito menos o caminho reencontrado. Por isso, ainda que a biografia de Sêneca esteja indissociável de sua obra, a deixarei para os mais “curiosos” e para o Google.
Nas três curtíssimas obras lidas - gigantes por sua força, clareza e poder comunicativo - Da vida retirada, Da tranquilidade alma e Da felicidade,  em diferentes momentos, ao fazer uma autodefesa das acusações que o lançavam, o de ser rico e conviver com tiranos por exemplo,  Sêneca nos legou uma série de reflexões e aconselhamentos que podem (eu disse podem) ser úteis para a vida, especialmente em dias de tormenta e tempestade, como as que hoje levantam a poeira e sacodem as ondas do mar.
Logo no início do primeiro capítulo de Da tranquilidade da alma, Sêneca, “dialogando em silêncio” com Sereno, parece apontar para a existência em nós de vícios que são abertamente expostos e contínuos, como os relacionados ao corpo e que, talvez por isso, nem percebamos mais o quanto podem estar a nos prejudicar. E há também aqueles que ocorrem em intervalos intermitentes, que são muito mais incômodos, visto ocorrerem nas “ocasiões mais oportunas” (eu diria também inoportunas). Não pude deixar de lembrar nesse momento da leitura, dos atos falhos expostos tão bem pela psicanálise de Freud e sua origem inconsciente. Mas dai a Sêneca o que é de Sêneca, e a Freud o que é de Freud. Não quero ser condenado por heresia hermenêutica.
Parece que o ponto central de todas as reflexões propostas pelo estoico nesse momento está nas ambiguidades produzidas pela inconstância humana e que podem ser provocadas pelos eventos no tempo (o que os estoicos chamavam de Destino ou Vontade do Logos, a razão divina) , por nossas atitudes e escolhas, bem como pela relação que temos com as coisas, com os outros e com nosso próprio eu. Inúmeras inconstâncias são apontadas por ele, como a que há entre o tédio e a contínua mudança de propósitos, entre aqueles que não conseguem dormir e os que se reviram constantemente no leito para o que o sono venha, os que querem reformar suas vidas de modo permanente e os que a inércia produz o ódio às mudanças, não porque gostem de suas vidas, mas porque a rotina os conformou a elas.
O desequilíbrio da alma encontra-se então quando “desejos tímidos” e “pouco prósperos”, sempre instáveis e volúveis, acabam por permanecer em alguns apenas na esperança, a de que um dia possam acontecer, o que produz o desgosto por si e pela própria vida, visto que sempre nada acontece. Outros, para alcançar tais desejos,  acabarão por conduzir-se de forma desonesta e por caminhos difíceis, e quando todo labor dispensado é frustrado, atormentam-se, não porque o que desejavam era vil e mal, mas porque o desejaram em vão e acabaram por dispensar tempo e energia inutilmente. Como já não dominam mais seus desejos e nem podem mais se submeter a eles, isolam-se na solidão insuportável, desgostam-se no abandono e não mais tolerando sua inércia, voltam-se contra o sucesso dos outros ambicionando a ruína de todos. Enfurecidos contra a “sorte”, queixam-se do tempo e afundam-se numa autocomiseração, espécie de autossabotagem por vergonha de si mesmos.
Na voz do filósofo podemos escutá-lo: “Assim, seus desejos, fechados em sua estreiteza, sem possibilidade de evadir-se, acabam por sufocar a si mesmos. Por esse motivo, advém tristeza, fraqueza e milhares de frustrações de uma mente tomada pela indecisão. Ela mantém em suspenso as esperanças suscitadas e se frustra na desolação.”
Os desejos, embora não alcançados e satisfeitos, não morrem, nem são totalmente abandonados, podendo irromper sempre. São como as feridas, que machucam e deixam suas cascas, mas ainda sim geram sensação de prazer quando coçadas.

Então, cuidar cuidadosamente:

1º) Do que desejamos;
2º) Do quão verdadeiramente são necessários e úteis tais desejos;
3º) Dos caminhos que precisaremos trilhar, para que não permaneçamos na eterna esperança que fatiga e mata;
 4º) Do quanto de trabalho e força teremos que dispensar para torná-los realidade;
5º) Do quanto estamos preparados e precavidos para a possibilidade de não vingarem.

Oxalá o tempo-hoje nos abra para o novo e não tenhamos que repetir o velho clamor:
“Até quando sempre as mesmas coisas?”.


Bibliografia: SÊNECA, Da vida retirada; Da tranquilidade da alma; Da felicidade. Tradução de Lúcia Sá Rabello e Ellen Itanajara Neves Vranas - Porto Alegre, RS: L&PM, 2013.






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